Categoria: Resenha

  • Bulgária: O Lado Esquerdo.

    Bulgária: O Lado Esquerdo.

    • Resenha do livro O Lado Esquerdo da História
    • História da Bulgária
    • Antropologia e gênero

    O Lado Esquerdo da História de Kristen Ghodsee foi sem dúvida um dos melhores livros que conseguir ler nos últimos anos, por duas razões: pelo tema abordado e pela forma como foi escrito. Kristen Ghodsee é uma conhecida antropóloga americana cujos estudos abordam temas relacionados a gênero e a Europa Oriental, após o colapso do comunismo. Em particular se concentra na região dos Balcãs, principalmente na Bulgária.

    O livro tem um tom particular: ao contrário do que se espera de uma obra escrita por uma acadêmica, a autora mescla suas pesquisas a elementos do seu cotidiano, suas impressões, e reflexões. Assim, é como se nós estivéssemos lendo o seu caderno de campo e não somente sua análise final. Essa característica, ao invés de deixar a análise confusa, acrescentou uma dramaticidade pessoal que deu maior intensidade ao livro.

    A obra começa com uma investigação sobre o assassinato de Frank Thompson que lutou como partisan na Bulgária até ser capturado e fuzilado. O capitão Thompson se tornou famoso por sua luta dedicada e foi homenageado até com nome de rua, durante o governo comunista. Ocorre que ele foi também o irmão mais velho, e para alguns o mais talentoso, de Edward P. Thompson (1924 – 1993) um dos mais importantes historiadores marxistas do século XX.

    Ao buscar as fontes de suas pesquisas sobre Frank Thompson, a autora entrou em contato com uma série de personagens que se entrelaçam com as tensões e conflitos de uma Bulgária presa entre as memórias do regime comunista e a crise que se abateu sobre o país na primeira década do século XXI. A Bulgária foi aceita na União Europeia, mas é considerada o seu membro mais pobre.

    As Mulheres na Bulgária Comunista.

    Se na primeira parte do livro, Kristen Ghodsee recupera a História daqueles que lutaram contra o fascismo, na segunda, ela se dedica à questão das mulheres na Bulgária, encontrando no seu percurso interessantes e intrigantes personagens.

    Entre esses personagens duas mulheres que trabalhavam para o regime se destacam. A primeira foi Elena Lagadinova, uma das heroínas da luta contra o nazi-fascismo, uma das mais jovens mulheres a fazer parte da resistência. Recebeu o codinome de Amazona por ter se reunido aos partisans e ao seu irmão Assen, um dos principais líderes, em um cavalo.

    Após a Guerra, e de se formar e doutorar, Elena integrou o Comitê das Mulheres. Durante o período comunista, a Bulgária conseguiu estabelecer uma relevante política de Estado com relação às mulheres o que incluía: licença maternidade de dois anos, jardins de infância, ingresso na universidade entre outras questões.

    Todo esse trabalho deu à mulher búlgara uma das melhores condições entre os países do bloco comunista e, certamente, muito melhor do que da maior parte dos países ocidentais.

    O Fim do Comunismo na Bulgária

    Com o fim do comunismo, Elena passou a ser apenas mais uma entre tantas aposentadas com as dificuldades financeiras de todos os búlgaros que viviam (vivem) de pensão, em plena crise que se abateu na economia europeia em 2008.

    Apenas saudosismo ou era tudo verdade?

    Entre os diálogos mais intrigantes registrados pela autora está o do seu último encontro com Anelia (pseudônimo). Anelia foi uma importante participante das publicações femininas na Bulgária e representante deste país em Berlim em diversos congressos.

    Ao longo dos anos ela sempre escreveu artigos críticos ao modo de vida ocidental, ao capitalismo, demonstrando como este explorava os indivíduos e os deixava em situação de miséria. Em todos os anos em que escreveu ela demonstrava desconfiança sobre o conteúdo dos seus próprios textos. Acreditava realizar apenas trabalho de propaganda ditada pela linha do Partido Comunista, da qual ela nunca foi um membro.

    Ao chegar aos setenta anos de idade, com uma pensão que não a sustentava, correndo risco de perder seu único apartamento e desempregada, ela olha para o passado e entende que tudo o que havia escrito de negativo sobre o capitalismo era verdade: “era tudo verdade”.

    Dilemas da Escrita da Bulgária

    Como muito bem aponta Ghodsee, escrever o comunismo nos coloca diante de muitas tensões. Os comunistas derrotaram o nazi-fascismo, mas instalaram um regime repressor e censor que levou milhares de pessoas às prisões e à morte.

    Assim como Boris Lukanov, assassino de Frank Thompson, Petar Gabrovski que pessoalmente assinou a deportação de 20.000 judeus está na lista de vítimas do comunismo.

    Ao mesmo tempo, no cotidiano, abriu horizontes para a ciência, para uma vida melhor das mulheres, principalmente na Bulgária, aprimorou a educação, garantiu emprego, moradia, assistência médica e principalmente acabou com a miséria. Em suma, deu estabilidade ao cotidiano dos indivíduos.

    Como articular essas duas pontas? Como expressar essas contradições? Este é o desafio de quem quiser escrever essa história de uma forma honesta. Honestidade que anda em falta nos estudos sobre o comunismo.

    Ávidos por ingressar no Ocidente, os países da Europa Oriental, com apoio financeiro do Ocidente, se apressaram em destruir qualquer referência positiva ao comunismo. Negam, manipulam, demonizam constantemente até mesmo a palavra socialismo.

    Mesmo os intelectuais, que tanto se beneficiaram do sistema universitário comunista, hoje trabalham com recursos ocidentais para falsificar a História. Colocam, assim, todos os reclames sociais gerados pela perda de benefícios e direitos que a adesão ao liberalismo radical representou, bem como todas as memórias que não combinam com a memória oficial, sob o rótulo de revisionismo e saudosismo.

    Ainda no que se refere à memória, o que se tem realizado é um discurso de vitimização, ou seja, todos viraram vítimas do comunismo, mesmo aqueles que eram conhecidos nazistas e fascistas. Como muito bem ilustra a autora, o assassino de Frank Thompson está em um destes sites de “memória” como vítima do comunismo.

    Referências

    Outros livros de Kristen Ghodsee

    Kristen Ghodsee. The Left Side of History. World War II and The Unfulfilled Promise of Communism in Eastern Europe. Duke University Press, 2015

    _________________ Lost in Transition: Ethnographies of Everyday Life After Communism, Durham: Duke University Press, 2011.

    ___________ Muslim Lives in Eastern Europe: Gender, Ethnicity and the Transformation of Islam is Postsocialist Bulgaria. Princeton: University Press, 2009.

    ___________ The Red Riviera: Gender, Tourism and Postsocialism on the Black Sea. Durham: Duke University Press, 2005.

  • Luís Carlos Prestes na obra de Daniel Aarão Reis….

    Luís Carlos Prestes na obra de Daniel Aarão Reis….

    • Resenha do livro Luís Carlos Prestes
    • Análise da Biografia
    • Comentários históricos

    Com ou sem polêmica era certo de que o livro Luís Carlos Prestes. Um revolucionário entre dois mundos de Daniel Aarão Reis (1946 – ) faria parte da minha lista de leituras. Não conheço o Daniel Aarão Reis pessoalmente, nem tive com ele qualquer forma de contato acadêmico ou institucional. No entanto, posso dizer que o conheço já faz muitos anos, pois sou um leitor assíduo de suas obras. Além dos vários artigos e conferências que assisti, também tenho na minha pequena biblioteca particular algumas de suas obras, como: Ditadura Militar, Esquerda e Sociedade (Zahar, 2000), As Revoluções Russas e o Socialismo Soviético (EDUNESP, 2003), Uma Revolução Perdida: a história do socialismo soviético (Perseu Abramo, 2007) e Ditadura e Democracia no Brasil (Zahar, 2014). Sobre este último pretendo dedicar algumas linhas nesse blog, quando for possível.

    Sem dúvidas, as obras desse autor fazem parte da minha formação como historiador e são constantes referências na minha forma de pensar o Brasil República e a História da União Soviética. Vale ainda acrescentar a sua influência  na história do marxismo e da esquerda, em geral, no Brasil. Referência não significa ausência de crítica, ou concordância absoluta, mas sou partícipe silencioso, ou nem tanto, das polêmicas, propostas e interpretações deste historiador.

    Senti a necessidade de esclarecer o lugar que este historiador, que considero brilhante, ocupa na minha formação, para me sentir livre para criticar a sua recente obra. Também quero esclarecer que não vou tomar lado nos debates e polêmicas. Em especial aquelas conduzidas pela filha do biografado Anita Prestes, a quem eu também não conheço pessoalmente, mas pela qual tenho profundo respeito pela historiadora. (As críticas de Anita Prestes a obra podem ser lidas AQUI)

    A confusão dos tempos históricos.

    Em diversos momentos, o texto cai em uma tremenda confusão de tempos históricos. Por exemplo, quando é feita uma citação não sabemos se é um texto escrito na época do evento narrado, se é uma memória escrita posteriormente ou algum documento da época que registra a declaração, como em um jornal. Aqui temos um problema grave!

    Não existe texto sem contextos (e a relação dialética entre os dois). Tal fato deixa o leitor confuso, pois o livro se converte em uma sequência de declarações desorganizadas e, assim, perde-se justamente a História. Quero dizer que eu não posso juntar um documento de uma época com um comentário feito quarenta anos depois sobre aquele evento sem contextualizar os dois documentos.

    No mais é sempre importante pensarmos que personagens históricos muitas vezes mudam de posição ao longo da vida. Até mesmo de ideologia! E o próprio biografado, no caso, o Luís Carlos Prestes, fez avaliações diferentes ao longo da vida sobre um mesmo episódio por ele vivenciado. Assim, quando perdemos do horizonte as relações tempo e vivências ficamos sem referências para refletirmos sobre os acontecimentos e, no fundo, eles se tornam muitas vezes confusos. Assim, a forma como foi armado o texto em nada ajuda o leitor.

    Em alguns casos, a ausência total de referências chega ao absurdo, como na polêmica afirmação sobre um suposto filho de Olga na União Soviética (fiz questão de colocar supostos aqui). Na página 171 aparece a seguinte referência: “ (…) Olga não tinha grande experiência de luta na clandestinidade. Casada e com um filho na União Soviética, sua missão, de seis meses, era oferecer as melhores condições de segurança para que Prestes pudesse ir para o Brasil e aí iniciar o trabalho revolucionário. (…)”

    Contando as estrelinhas lá no fim do livro, descobrimos que essa informação saiu dos arquivos da Internacional Comunista. No entanto, não consta a referência a um documento específico, ou em que circunstâncias tais documentos (ou documento) foiram escritos. Enfim, estamos sem nada nas mãos! Principalmente, porque Aarão não volta ao tema! Não coloca uma observação a mais. Nem mesmo quando trata do longo período da família Prestes na URSS. Parece que essas linhas ficaram simplesmente perdidas no texto. Teria sido um erro? Não sei, mas é a minha impressão final… Esperamos esclarecimentos do autor…

    Família Prestes

    Algo que nos chama a atenção ao longo de toda obra é a forma como Daniel Aarão Reis trata a família Prestes. Se Luís Carlos Prestes, como veremos, é tratado com reverência e elogios, o mesmo não se dá com relação a sua família. O autor trata de um tema delicado. A mãe de Prestes teria sempre omitido que duas das irmãs de Prestes teriam nascido de outro relacionamento após a morte do pai de Luís Carlos Prestes, ainda jovem. A questão, como o próprio autor coloca, é que na década de 1920 isso era condenável e, portanto, era “normal” que uma mulher buscasse se preservar de uma sociedade moralista e machista.

    Esse ocultamento só aparece em algumas falhas, como por exemplo, nas datas de nascimento que não batem com a data de morte do pai ou em um documento soviético que logo é substituído por outro. Neste sentido, descobrimos que na família Prestes esse tema era um tabu. A questão é: em que outra família não seria?

    Para além, se esse fato não tem nenhuma conexão com o comportamento moral de Prestes e nenhuma influência sobre as suas decisões, fora a curiosidade da vida privada, qual é a relevância do fato para entendermos o biografado? O texto não deixa claro e a conclusão a que se chega é: nenhuma!

    Da forma como Daniel Aarão Reis desenha a relação entre Prestes e a sua família fica um incômodo, pois parece que ocultar a origem e a existência de determinados filhos é um comportamento padrão. Primeiro essa questão da mãe de Prestes, segundo o suposto filho de Olga (coloco supostos novamente) e terceiro os filhos da segunda esposa de Prestes fruto de um primeiro relacionamento, mas que Prestes sempre tratara como filhos e que somente muito depois souberam de seu verdadeiro pai.

    Seria esse um comportamento padrão da família Prestes?

    A história é muito mais complicada do que isso e o próprio autor a esmiuça em detalhes para mostrar que não se tratava de uma questão moral, mas sim de múltiplas circunstâncias de que quem vivia ao lado de Prestes acabava tendo que suportar, pois exílio, clandestinidade, confusões e intrigas políticas sempre foram parte da vida deste atribulado personagem e sim afetaram as suas relações pessoais e familiares como era de se esperar.

    Seja como for, não deixa de ser incômoda essa entrada na vida privada que o autor faz, mas afinal é uma biografia e entrar na vida privada de personagem políticos não é uma tarefa fácil. Compreender mais do que julgar, bom, essa é uma tarefa para poucos.

    Quem foi Luís Carlos Prestes?

    Aqueles que procurarem uma obra anti-Prestes nesse livro certamente vão sair decepcionados. Não há uma única palavra contra Prestes, pelo contrário. Todos os adjetivos, mesmo em momentos complicados de sua vida parecem ser elogiosos. Suas qualidades pessoais e sua coerência ideológica são uma marca de sua trajetória.

    Assim, emerge uma imagem de Prestes bastante distinta do assassino cruel e calculista da obra de Willian Waack Camaradas, Nos Arquivos de Moscou: a história secreta da revolução brasileira de 1935 (Companhia das Letras, 1993), ou do herói iludido pela ideologia soviética da obra de Paulo Sérgio Pinheiro Estratégias da Ilusão. A Revolução Mundial e o Brasil, (Companhia das Letras, 1991). Também não é o Prestes herói romântico do Fernando Morais em Olga (Companhia das Letras, 2008) e menos ainda um mítico cavaleiro da esperança de Jorge Amado. Só para citar algumas referências…

    É bem possível que por se distanciar dessas imagens de louvação por um lado e de escárnio de outro que a obra de  Daniel Aarão Reis provoque incômodos. Aqui temos um Prestes com muitas qualidades, mas com dilemas, com uma coerência que esbarra na própria mudança dos tempos políticos. Ele errou, e feio, mas não é nem herói e nem bandido e sim um homem lutando com o seu tempo histórico e com os seus possíveis. Por essa razão, creio que a obra que o autor nos apresenta tem mais méritos do que se tem dado nas críticas (ao menos nas que eu tenha lido).

    Um ponto que gostaria de destacar da obra é a parte final. Em geral estamos mais acostumados com a história de Prestes na Coluna ou na “intentona”, menos destaque, por motivos óbvios, damos ao seu papel no fim da ditadura e do seu rompimento com o PCB, por exemplo.

    Aqui temos uma questão importante para percebermos quem foi Prestes, pois não foi ele quem mudou de rumos. Prestes continuou fiel ao socialismo e aos projetos de transformação radical da sociedade. Quem abandou tal projeto foi o PCB e no final das contas a própria União Soviética que, apesar das homenagens, no final acabou por desconsiderar e até desprezar Prestes, quando esse cobrava um compromisso com o socialismo que a própria URSS já tinha perdido.

    A coerência de Prestes se tornou incômoda no fim dos anos 1970 e na década de 1980. Trouxe críticas e problemas aos novos atores sociais, como Lula, e também, a antigos políticos, como Leonel Brizola, que muitas vezes recebeu apoio crítico de Prestes na luta contra a ditadura que ia chegando ao fim. Assim, o Velho, como passou a ser chamado, dá uma lição de compromisso com a esquerda e com o socialismo, enquanto os demais a sua volta foram fazendo concessões e mais concessões a uma “democracia” limitada e controlada da qual Prestes já desconfiava.

    É para se pensar…

    No mesmo sentido, seria curioso de ver a cara dos velhos decrépitos que governavam a União Soviética nos seus últimos dias e os moralistas do PCB ao escutarem declarações como essas do nosso Velho comunista, citado por Aarão na página 464:

    Um dia, quando a humanidade construir uma sociedade igualitária, todos terão liberdade para fazer qualquer coisa. Quem quiser fumar maconha, vai fumar. Homem que quiser casar com homem, vai casar. Quem desejar morar em outro planeta, vai morar (…) sem repressão religiosa, policial, ditatorial ou política. Nessa época a humanidade estará livre dos preconceitos que infernizaram a sua trajetória. (…)”

    Por fim…

    É fato que a obra deixa muitas lacunas e pontos problemáticos que precisam ser esclarecidos e estamos certos de que seria salutar se o próprio autor assim o fizesse. Uma obra como essa é merecedora de um debate tanto por respeito à figura de Prestes, quanto à pesquisa e interpretações que Daniel Aarão Reis nos propõe. Assim, longe das críticas radicais e das acusações sem o menor sentido essa é uma obra que deve permanecer viva enquanto referência e análise, pois no fim ela tem mais a contribuir para esse importante personagem da nossa vida política do que as críticas radicais e o “puxa-saquismo” tem permitido discutir. Não é uma obra anticomunista e também não é uma obra oficial para o PCB ou instituto Prestes, tampouco é uma obra que vá servir aos que odeiam Prestes e o Comunismo. Pontos para Daniel Aarão Reis!

  • A Noite dos Generais: Um Comentário 

    A Noite dos Generais: Um Comentário 

    • Sobre o filme A Noite dos Generais
    • O nazismo na Segunda Guerra Mundial
    • A perversa moral

    A noite dos generais: um comentário. Mania de ver filme antigo! Não tão antigo, esse é de 1967. Vi quase por acaso! Estava procurando outra coisa na internet, quando me deparei com A Noite dos Generais (The Night of the Generals). Um filme dirigido por Anatole Litvak, conhecidos por filmes como: Crepúsculo Vermelho, Anastacia, a Princesa Esquecida e A Cova da Serpente. No elenco, o filme conta com Omar Sharif, Peter O’Toole e Tom Courtenay.

    Não me lembro quando o assisti pela primeira vez, mas sei que me marcou… Não pela ação, elaboração ou mesmo pelo brilhantismo da narrativa. O filme fica longe de ter tudo isso e, se não fossem por algumas cenas psicológicas intensas, e uma das análises mais extraordinárias sobre um criminoso de guerra apresentado no cinema, seria simplesmente enfadonho. Tem uma característica bem típica do cinema da década de 1960: é longo e tem imagens e tomadas lentas.

    Inicialmente a história parece simples e estranha. Durante a Segunda Guerra Mundial, um general nazista de elevada patente era também um frequentador de bordeis e assassino de prostitutas. A primeira prostituta foi assassinada em Varsóvia e um investigador alemão foi designado para investigar o brutal assassinato. O criminoso foi transferido para Paris, então sob ocupação nazista, e ali assassina mais uma prostituta. O investigador alemão se junta a um policial francês, simpático à resistência, e toma como missão investigar os crimes contra as prostitutas. Mas afinal, para quê?

    Quem se importa?

    Quem se importa com a morte de prostitutas durante uma Guerra que provoca o assassinato de milhões de outras pessoas? Pior! Prostitutas que aceitavam se deitar com militares de uma força militar de ocupação!

    Em meio à investigação e às atividades de repressão e comando das tropas de ocupação, o filme constrói uma sequência de cenas brilhantes, recuperando os aspectos nefastos deste período da história da França ocupada, perdida entre colaboracionistas e a resistência.

    Entre as cenas, merece destaque, a que se passa no museu do Louvre. Os nazistas classificavam as obras que não obedeciam a sua estética, uma cópia da arte clássica, como “arte degenerada”, entre estas estavam as obras realizadas por judeus. Durante o regime Nazista foram organizadas várias exposições sobre a chamada arte “degenerada”. Nos países, ocupados pelos nazistas, os museus eram também reorganizados (pilhados em grande parte) e elaboradas galerias de obras “degeneradas”.

    A visita ao museu

    O General visita uma dessas galerias dedicadas à “arte degenerada” e encontra a obra de Vicente van Gogh considerado degenerado tanto pela sua estética pós-impressionista como pela sua biografia e seu processo de loucura. Foi justamente diante do quadro Auto Retrato que o General se depara com a própria loucura. E olha a orelha defeituosa representada no quadro. A lenda é que o pintor cortou a sua própria orelha para se parecer com a da representação já que não conseguia pintar uma orelha como a sua. Diante desse símbolo estético da loucura, o General, entra em crise.

    Observa o quadro com olhos arregalados! Fixa seu olhar na orelha cortada! Transpira! Seus olhos se tornam olhos de psicopata revelando o que a sobriedade da sua farda e de seus luxos escondia. Colocado diante da representação da loucura, ele encontra a sua própria loucura, e entra em pânico com ela. Perde o seu autocontrole e corre da galeria em um ato de fúria e medo.

    Após a Guerra

    Com o terminar da Segunda Guerra Mundial, o General foi preso e julgado pelos seus crimes de Guerra. Passou alguns anos na prisão e foi liberado.

    Ao reencontrar a liberdade passou a ostentar, ainda que mais velho, sua postura militar, seus trejeitos nazistas. Encontra também seguidores do velho nazismo, que mesmo derrotado é capaz de mobilizar os insanos e dementes. Uma centena de seguidores para os quais defendia seu legado e sua ideologia.

    Em uma das conferências que proferia, difundindo a sua ideologia de ódio e assassinato, ele, diante dos seus admiradores, encontra o detetive que guardara as provas necessárias para incriminá-lo como assassino comum. O detetive o enfrenta, não mais como general, ou o propagandista de uma ideologia, mas como assassino comum!

    Restava-lhe enfrentar a sua verdade e revelá-la a público. Desmascarar sua ideologia e assumir a sua psicopatia. Ninguém segue um psicopata se reconhecer nele um psicopata! Restava-lhe a perpétua humilhação de assassino comum de pessoas que não teriam condições de se defender.

    Ali, ele já estava morto. Restava-lhe somente realizar o gesto final…

    A Noite dos generais e a Perversa Moral 

    Movidos por ideologias somos capazes de aceitar a justificativa pela morte de milhões!

    No entanto, o assassinato de prostitutas é apenas um ato insano! Psicopata…  Se o assassino de milhões é descoberto como o assassino de prostitutas, a sua psicopatia é revelada. A loucura escondida por trás do discurso contundentes e moralista, do seu uniforme, da sua patente… Se revela e se autodestrói.

    O psicopata travestido de autoridade, que quer seguidores não pode se deixar revelar, enquanto psicopata.

    Ele tem que usar uma máscara permanente de homem moral, de defensor “dos grandes ideais”, de promessa de um grande futuro glorioso. As suas ações têm que ser percebidas como um sacrifício, como gesto heroico, mas na noite são apenas doentes psicopatas que se escondem na perversão do poder pela sua investidura.

    Depois de ver o filme fiquei refletindo sobre os defensores das ditaduras.

    Os homens de bem!

    Saudosistas dos grupos de extermínio!

    Da ordem construída sobre a tortura!

    Aqueles que argumentam que não se percebia o regime autoritário!

    São eles os que seguem, como inocentes úteis, como massa, os psicopatas vestidos de autoridade? São eles os que foram cúmplices e preferem o silêncio complacente para que sua face mais cruel permaneça nas penumbras da história.

    Aqui e lá, os heróis da segurança nacional eram eles assassinos de prostitutas, homossexuais e “bandidos” nas noites. Os nossos repressores matavam por dinheiro e torturavam por sadismo. Eram psicopatas úteis de um projeto de poder que nem mesmo tinham capacidade para entender. Saíam dia e noite na busca de fama, dinheiro e aventura… Essa era a noite dos nossos Generais e dos seus cúmplices.

    Nós e a Noite dos Generais?

    No nosso eterno medo da liberdade, diante de um futuro incerto e da nossa imaturidade preferimos deixar para que o outro organize esse mundo e nos deixamos ser guiados.

  • Direitos Humanos Sem Ser Chapa Branca!

    Direitos Humanos Sem Ser Chapa Branca!

    • História dos Direitos Humanos
    • A proposta de Samuel Moyn
    • Direitos Humanos como Utopia

    Direitos Humanos Sem Ser Chapa Branca! História dos Direitos Humanos. Os usos e abusos do passo… Como uma vez comentou minha amiga Renata Meirelles: Samuel Moyn é um dos poucos estudiosos sobre Direitos Humanos que não é “chapa branca”. Uma definição perfeita para o professor de Direito e de História da Universidade de Havard. Em sua obra Human Rights and the Uses of History (2014).

    Samuel Moyn assume um tom crítico elevado tanto sobre os usos históricos como pelos abusos retóricos nas políticas externas da noção de Direitos Humanos. Contudo, ao contrário da esquerda radical – que ainda hoje o despreza como conceito “burguês” – e da extrema direita – incapaz de compreender a universalidade da condição humana – Moyn demonstra como Direitos Humanos é um conceito em disputa.

    A análise históricas e os mitos fundadores

    No que se refere a análise histórica, e aqui não pretendo comentar cada um dos autores com os quais Moyn debate, pois seria uma lista extensa (Lynn Hunt, Tony Judt, David A. Bell…) o autor critica e desconstrói um discurso que se tornou “padrão” e é adotado como “A” história dos Direitos Humanos.

    Se entrarmos na maioria dos sites de instituições vinculadas as lutas pelos Direitos Humanos, nos manuais e textos de referência dos cursos de Direito e de Relações Internacionais, encontramos uma narrativa linear que começa em uma antiguidade longínqua, passa por marcos históricos medievais, posteriormente a Revolução Francesa e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e chega ao ápice com o documento aprovado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948. Essa narrativa também, vale dizer, é adorada sem maiores críticas por historiadores, politólogos, internacionalistas, jornalistas e etc.

    No entorno de cada um desses marcos se formou uma mitologia que nos leva a acreditar que a humanidade caminhou sobre as suas tragédias até encontrar o Direito Universal. É justamente esse aspecto que Moyn vai tratar de desmontar (ou desconstruir). Tomemos dois importantes exemplos utilizados pelo autor.

    Desconstruindo os Mitos fundadores na História dos Direitos Humanos

    Ao analisar a Declaração Universal dos Direitos do Homem e dos Cidadãos aprovada durante a Revolução Francesa, Moyn demonstra que esta tinha como horizonte o conceito de NAÇÃO. Assim, o documento buscava vincular o indivíduo (agora convertido de súdito a cidadão) a sua terra natal (a sua nação), portanto estava longe de estabelecer parâmetros para toda humanidade. Na realidade a sua noção de “universalidade” era bastante limitado. Nesse sentido, é que o autor questiona esse marco histórico como uma das origens dos Direitos Humanos, na sua percepção universal.

    Outro questionamento é sobre o impacto do holocausto como “A” causa principal que teria levado as Nações Unidas, na sua fundação, a adotar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Para desconstruir essa ideia, Moyn dedica um capítulo inteiro do livro intitulado: The Intersection with Holocaust Memory, retoma alguns fatos históricos. Ele demonstra a dissincronia entre difusão do que foi o holocausto com a aprovação do texto pela ONU. Para o autor, o texto da ONU foi aprovado antes que se desse o conhecimento pleno do holocausto e que a sua magnitude pudesse ter sido absorvida pelos países membros da ONU. É um argumento para lá de polêmico!

    De certa forma, como nós absorvemos a história dos Direitos Humanos até hoje, sempre colocamos o holocausto como o epicentro do reconhecimento da necessidade de um código universal de direitos que garantisse a dignidade humana. Contudo, Moyn argumento que assim como no caso francês, o texto da ONU tem uma universalidade limitada. Ela é limitada no que se refere a proteção do indivíduo em escala global e, novamente ele servia para vincular cada indivíduo a uma nação, a um país, tal qual o texto francês.

    Direitos Humanos e a Intervenção Humanitária

    Importante notar, que da mesma forma que o autor desconstrói a ideia de intervenção humanitária, pois nos anos de 1990 essa começou a ser utilizada pela ONU e justificar as ações do governo Bill Clinton (como a intervenção em Kosovo). Alguns intelectuais se obrigaram a encontrar precedentes históricos e muitos deles são simplesmente absurdos. Entre eles argumentar que a ação inglesa de afundar navios negreiros era uma forma de intervenção humanitária orquestrada pelo Império Britânico.

    Para o Moyn intervenção humanitária é simplesmente um erro! A mesma desconfiança o autor lança sobre as Cortes Internacionais que, apesar da sua pretensão universalista, até hoje somente jugou criminosos de países subdesenvolvidos, a maior parte da África, e jamais tocaram os violadores dos países desenvolvidos.

    Qual é a história dos Direitos Humanos proposta por Moyn

    Dessa feita, fica o questionamento: então quando a noção de Direitos Humanos, entendido como a necessidade de proteção a dignidade humana teria emergido? Para responder essa questão Moyn retoma a sua obra anterior The Last Utopia (2010) na qual argumenta que os Direitos Humanos se tornaram a última Utopia – como já aponta o título.

    Assim, nos anos 1970, quando as demais utopias que visavam a transformação radical do sistema, como a socialista, entram em decadência, vencidas tanto na Europa como na América (Norte e Sul) é que emerge a luta pelos Direitos Humanos. Uma luta, não vinculado a um governo específico e em nome da proteção individual contra as violações cometidas pelo Estado. Devemos lembrar que este era também um período em que prevaleciam as ditaduras militares na América Latina. As ditaduras usavam sistematicamente a tortura, das lutas coloniais, além de países que lutavam contra a segregação racial e pelos Direitos Civis, notadamente na África do Sul e Estados Unidos.

    Isso não significa que Moyn jogue o conceito no lixo, pelo contrário! O que ele busca é uma estratégia de abordagem sem ilusões que permitam um entendimento crítico do conceito seus usos e abusos e principalmente o uso de uma suposta história da ideia de Direitos Humanos para justificar ações no presente.

    Algumas considerações e criticas

    De todas as questões apresentadas gostaria de deixar apenas algumas questões a serem consideradas. Primeiro, o autor toma muito `a sério a ideia de fim das utopias. Principalmente das utopias da esquerda de transformação da sociedade, essas podem ter mudado de forma, mas afirmar que terminaram é algo bastante questionável (isso fica mais clara no livro anterior).

    Esse entendimento é bastante comum entre os pensadores liberais e conservadores Norte-Americanos, desde a década de 1990, com o fim da URSS: O fim das utopias e a vitória do liberalismo. Assim, embora seja um crítico ferrenho dos “liberais internacionalistas”, acaba por assumir um dos pontos principais da argumentação destes com relação a construção de “uma nova ordem multipolar”.

    Retomando um clássico

    Outra questão a ser coloca é uma observação de Norberto Bobbio no seu livro A Era dos Direitos (2004). Eu sei que esta é uma obra limitada (ao contrário das outras obras desse autor) e até mesmo datada, tanto assim que foi (e é) utilizada como manual em vários cursos de graduação. Por fim, está mais do que claro que é justamente esse tipo de narrativa que Moyen critica. Ainda assim tem um ponto que eu acredito que mereça ser trazido para o debate. Qual seja?

    Nos demonstra Bobbio que tanto o texto francês quanto o aprovado nas Nações Unidas, se eram limitados no seu alcance universal, ambos tornaram-se referências em todas as constituições dos Estados Modernos e, desta forma, seus princípios incorporados pelos países. Por que esse ponto é fundamental? Porque de uma forma ou de outra, foi a incorporação desses princípios que permitiu aos grupos de Direitos Humanos. Na década de 1970, a utilizarem as próprias constituições nacionais contra as violações realizadas pelos seus governos.

    Da mesma forma, no plano internacional, foi o que permitiu que os países aprovassem as resoluções na ONU e nos Congressos subsequentes sobre o tema pois havia, ainda que de forma discursiva, uma congruência mínima entre os princípios constitucionais, de cada país, e as propostas no plano internacional. Essas brechas possibilitaram muitas das ações dos grupos de Direitos Humanos na luta contra as violações, tanto no plano interno quanto no internacional, como colocamos.

    É para ser lido!

    O livro de Samuel Moyen é excelente pela sua proposta interpretativa. Mesmo que o leitor não concorde com ela, e pelo exercício de desconstrução historigráfico que o autor realiza com acidez e maestria. Eu diria mesmo que é uma leitura obrigatória para qualquer debate sobre o tema. Como coloquei no início, não espere um discurso bonitinho sobre Direitos Humanos e nem a sua glorificação, o autor não é “chapa branca”!

    Especificamente, para nós brasileiros há uma questão importante! Muitos intelectuais defendem que o Brasil deveria adotar uma política externa voltada para os Direitos Humanos criticando a política atual (que sim merece muitas crítica!). Esse discurso é muito comum entre os liberais e conservadores que tem nos Estados Unidos e na Europa um horizonte, pois bem! Eis uma boa leitura para uma visão mais crítica sobre o tema.

    Lamentavelmente o livro não foi publicado em português e como hoje são lidos mais manuais e resumos do que obras. E qualquer contestação a verdades estabelecidas no Brasil é um problema, acho que as ideias dele vão demorar uns 10 anos para chegar aqui na vanguarda do atraso.

    Referências:

    MOYN, Samuel. Human Rights and the Uses od History. London/ NYC: Verso, 2014.

    MOYN, Samuel. The Last Utopia. Human Rigts in History. Harvard University Press, 2010.

    BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro. Campus, 2004.

  • Legado de Cinzas: uma história da CIA

    • Resenha do livro Legacy of Ashes. The History of the CIA
    • Sobre Tim Weiner
    • A CIA e a Guerra Fria

    Não tenho dúvidas que Legacy of Ashes. The History of the CIA é a obra narrativa mais completa sobre a atuação da CIA. O livro de Tim Weiner recebeu o principal prêmio que um jornalista norte-americano pode receber: o pulitzer. Sua proposta é realizar uma história narrativa dos principais eventos sobre a CIA que se estende da sua fundação ao o que o autor considera o seu momento de maior crise, com a revelação de que o Iraque, ao contrário do que foi levado ao público, não possuía armas de destruição em massa.

    Essa longa trajetória, cobrindo aproximadamente 60 anos, é realizada em 778 páginas. Sua narrativa é clara e prende a atenção do leitor. Mesmo para um leitor estrangeiro, como eu, o vocabulário é acessível e as construções gramaticais não se prendem a desnecessários rebuscamentos. Sua pesquisa também merece destaque. Embora o autor cubra temas relacionados à inteligência americana para diversos órgãos de imprensa, não utilizou fontes que não possam ser verificadas. Com isso a narrativa histórica, feita por um competente jornalista, ganha credibilidade e não se perde nos corredores das hipóteses mirabolantes e das teorias da conspiração.

    Esse é um aspecto importante! Aquele que se propõem a escrever a história de qualquer órgão de segurança (ou de inteligência) anda sempre no fio da navalha entre as teorias da conspiração, o que veio a público e o que pode ser comprovado. A própria comprovação é, muitas vezes, o maior problema. Assim, entrar em assuntos espinhosos e ao mesmo tempo manter a sobriedade da pesquisa é algo exaustivo e cansativo. (Aqui compartilho minha experiência trabalhando com os arquivos do Deops-SP).

    Seja como for, o autor realiza o que se propõe e o que nos oferece cobre uma ampla história da CIA. Não quero dizer com isso que não caibam questionamentos às suas afirmativas. Pelo contrário! Menos ainda que ela é completa e absolutamente correta (mesmo porque isso não existe em nenhum trabalho histórico). Na realizada, o autor nos apresenta uma avaliação bastante pessimista da atuação da CIA. Demonstra exaustivamente a sua debilidade, as suas falhas e os seus erros. O principal deles, ainda segundo o autor, foi o de sempre depender da inteligência de outros países. Mostra ainda a incapacidade desta ter penetrado a URSS, durante a Guerra Fria. Narra uma quantidade enorme de operações fracassadas nas mais diversas partes do mundo, da América Latina, Ásia e Oriente Médio. Ressalta ainda alianças duvidosas com o sub-mundo em diversos países do mundo.

    De toda as trajetórias descritas pelo autor gostaria de destacar uma em particular que se refere à Europa Centro-Oriental. Logo no início da Guerra Fria, com o objetivo de levar um discurso pró-ocidente e pró-liberdade para dentro da URSS e dos demais países comunistas, a CIA junto com diversas organizações, apostou na Rádio Europa Livre. A Rádio difundia um discurso do Ocidente que poderia ser facilmente captado por qualquer rádio e que com a tecnologia então disponível era praticamente impossível bloquear sem danificar seriamente a comunicação destes países.

    Guerra Fria: a CIA e a Europa Centro-Oriental: Rádio Europa Livre.

    No delinear da Guerra Fria, uma questão que se abriu foi como lidar com aqueles que haviam escapado da União Soviética e dos países sob regime comunista da Europa Centro-Oriental. Em particular com os intelectuais que agora viviam no ocidente. Assim, os principais cabeças da CIA como, Frank Wisnes, Kennan e Allen Dulles viram uma forma muito melhor de lidar com o fervor e com a energia destes intelectuais dos exilados e decidiram por abrir um canal por trás da cortina de ferro: a Rádio Europa Livre.

    O plano teve início no final de 1948 e no início de 1949, mas foram necessários mais de dois anos para que a rádio fosse levada ao ar. Dulles se tornou o fundador do  Comitê Nacional para Europa Livre (National Committee for a Free Europe), um dos muitos frontes organizados e financiados pela CIA nos Estados Unidos. A comissão da Europa Livre incluiu o General Eisenhower, Henry Luce, os editores da Time, da revista Life e da Fortune e Cecil B. DeMille, um produtor de Hollywood, todos recrutados por Dulles e Wisner como um disfarce  para o verdadeiro propósito: a rádio se tornaria uma arma política na Guerra Fria. Assim, durante décadas pelas ondas do rádio, a CIA, com apoio de muitos intelectuais, lançou contra a chamada “cortina de ferro” um discurso anti-comunista e que incentivava a rebeldia em todos os países na Europa sob domínio comunista.

    Sobre esse aspecto, gostaria de complementar com a seguinte observação. Em muitos países, como na Lituânia atual, a rádio livre entrou na narrativa histórica como parte da resistência “nacional” contra o comunismo. Se de fato, vários lituanos trabalharam nela, ou para ela, é sempre necessário frisar esse aspecto, qual seja, tratava-se de um projeto propaganda e com uma intenção muito bem estabelecida no delinear de uma Guerra. Portanto, estava longe de ser uma atividade espontânea de resistência, como muitas vezes aparece.

    A Tragédia dos Agentes Antissoviéticos.  

    Steve Tanner era um veterano da inteligência do exército e recém egresso da Universidade de Yale, contatado por Richard Helms, poderoso diretor da CIA, em 1947. Em Munique, na Alemanha, sua missão era recrutar agentes que pudessem oferecer material de inteligência aos Estados Unidos atuando por trás da Cortina de Ferro.

    Dessa forma, quase todas as nacionalidades da União Soviética e da Europa Oriental tinham pelo menos um importante grupo, ou que se autoconsiderava importante, de emigrado, buscando pelo socorro da CIA em Munique e em Frankfurt. Alguns dos homens que Tanner investigou como potenciais espiões eram Europeus Orientais que tinham tomado o lado da Alemanha contra a Rússia. Elas incluíam pessoas com passado fascista que tentavam salvar suas carreiras tornando-se úteis aos americanos. Tanner afirmou, e estava preocupado, pois “eles estão automaticamente do nosso lado”. Outros que haviam saído da periferia da União Soviética exageravam seu poder de influência. “Esses grupos de emigrados, o seu principal objetivo é convencer o governo dos Estados Unidos da sua importância e da sua habilidade de ajudar o governo dos Estados Unidos, e então receber apoio de uma forma ou outra”.

    Para organizar suas atividades antissoviéticas, Steve Tunner estabeleceu que para receber ajuda da CIA, os emigrados deveriam ter conexões na sua terra natal e não nos cafés. Eles não deveriam estar comprometidos com o nazismo. Em dezembro de 1948, após um estudo cuidado ele finalmente parecia ter encontrado um grupo: Supremo Conselho para a Libertação da Ucrânia.

    Eles foram infiltrados, mas a União Soviética foi capaz de identificar todos eles e rapidamente os eliminou, assassinando todos eles! Ao estilo soviético… Com isso, centenas de agentes estrangeiros da CIA foram enviados para a morte na Rússia, Polônia, Romênia, Ucrânia e nos países Bálticos durante os anos 1950.

    Essas são apenas algumas das histórias tratadas por Tim Weiner, em sua obra. E por essas e outras que ele considera que o legado da CIA tenha sido um “legado de cinzas”… Ainda sobre a Europa Centro-Oriental o autor enfatiza sua incapacidade de entrar na inteligência soviética e ainda sua total surpresa diante do colapso da URSS e do regime comunista na Europa Oriental…

    Essa é uma questão bastante preocupante para a atualidade: se a inteligência americana não conseguiu compreender e entender a União Soviética, como esperar que lidem agora com a Rússia e suas ações nos países que fizeram parte da URSS? Essa vai ser  outra história.

  • FBI uma História dos seus Inimigos

    FBI uma História dos seus Inimigos

    • Sobre Tim Weiner
    • uma estimulante pesquisa
    • as polêmicas entorno de Edgar Hoover
    • Filme J Hoover de Clint Eastwood
    • Tim Weiner. Enemies. A History of the FBI.  New York, Random House, 2012.

    O livro Inimigos: Uma História do FBI, de Tim Weiner, é uma obra estimulante e instigante, pois busca traçar um amplo histórico do FBI, desde a sua fundação até o ataque  terrorista de 11 de setembro, além de apontar alguns dos problemas atuais da instituição e do sentimento de fracasso que se abateu sobre todos os órgão de inteligência americanos, após o ataque às Torres Gêmeas.

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    O jornalista Tim Weiner é um autor reconhecido e premiado. Ele recebeu o Pulitzer (o principal prêmio nos EUA), pelo livro Legacy of Ashes, um livro dedicado a analisar a CIA. Durante anos, ele foi correspondente do jornal New York Times (entre outros) cobrindo a CIA e se tornou um especialista em temas relacionados a inteligência. Os jornalistas americanos, mesmo entre os conservadores, são capazes de realizar habilidosas e competentes pesquisas históricas e, eis aqui, um bom exemplo.

    Os Inimigos do FBI

    Uma  característica importante do trabalho de pesquisa do autor foi a utilização somente de materiais, documentos, “desclassificados” e, portanto de acesso público. Isso permite que o leitor interessado, como eu, busque as fontes sem dificuldades. Claro, que essa forma de trabalhar só é possível quando há uma política de arquivos (que não é perfeita, mas é melhor do que a nossa). Esse procedimento evita, também, as especulações, o uso de fontes ocultas e inventadas, como muitas vezes já vimos por essas terras.

    A narrativa proposta por Weiner é organizada de forma cronológica e o livro é dividido de acordo com a administração, ou seja, o presidente que governava. Esse é um procedimento clássico na história e no jornalismo norte-americano. Essa característica reforça um dos pontos fortes do livro: como cada presidente americano lidou com os órgão de segurança? Assim, somos informados sobre os dilemas de Roosevelt, os usos e abusos de  Nixon, a desconfiança com relação aos democratas, em particular Kennedy, e Clinton que deixou o FBI à míngua em termos de recursos.

    Quem foi Edgar Hoover? 

    Nessa relação entre a instituição e os presidentes a principal figura, e não poderia ser diferente, é John Edgard Hoover, pois foi ele foi o primeiro diretor do FBI e permaneceu no cargo de 22 de março de 1935 até 2 de maio de 1972, quando faleceu.  Portanto, dirigiu o FBI por 48 anos! (vou concentrar este post neste aspecto). Interessante notar que em um país com alternância democrática na presidência, um dos cargos mais importantes dentro da segurança de Estado tenha experimentado tamanha estabilidade.

    John Edgar Hoover, nasceu em Washington D.C em janeiro de 1895 e quando entrou nas forças policiais, enfrentava sobretudo as “ameaças” internas, os anarquistas, que haviam realizado diversos atentados nos EUA, e posteriormente os comunistas. Sem esquecer do combate ao crime organizado, que foi o que levou Hoover a fama. Após a Segunda Guerra Mundial foi Hoover quem preparou o FBI para enfrentar a Guerra Fria e, claro, o crime organizado.

    A análise e caracterização de Hoover realizada por Weiner é muito intrigante. O autor demonstra que o diretor do FBI era capaz de odiar igualmente qualquer coisa que demonstrasse uma ideologia… Que demonstrasse rejeição ou que se diferenciasse do “sonho americano”, dos “valores americanos”. Assim, perseguiu violentamente, e muitas vezes usando recursos ilegais: anarquistas, comunistas, o movimento negro, hippies,  mas também os movimentos racistas como a Ku Klux Klan e os movimentos que pregavam (ainda pregam) a supremacia ariana. Alguns dos seus “inimigos” foram personalidades públicas, como Luther King… e por aí vai!

    Outra característica de Hoover era o seu personalismo. Em muitos casos tratava pessoalmente das operações e mantinha um arquivo próprio de informações. Em muitos documentos as instruções e as comunicações eram realizadas com um E. H., na borda, indicação clara de quem dera a instrução e como deveria ser seguida.

    Hoover homossexual?

    Um ponto polêmico do livro é a análise da relação entre Hoover e seu principal assistente: Clyde Tolson. Na literatura recente sobre Hoover encontramos de forma explicita e / ou  sugerida a homossexualidade de Hoover e os dois são frequentemente descritos como amantes. Esse aspecto foi explorado em algumas biografias e até no cinema. Tim Weiner descarta essa ideia, para o autor, Hoover não manteve relações sexuais com Tolson ou com “qualquer outro ser vivo”. Assim, para ele, Hoover era “assexuado” (palavra minha e não do autor).

    Parece um argumento estranho, para dizer o mínimo, porém a visão de Weiner sobre o contexto da sociedade americana é mais interessante do que qualquer argumento sobre esse aspecto. Afinal, cabe questionar: Qual é a relevância desse fato (se foi um fato)?  Qual a relevância em se saber se o diretor do FBI era ou não homossexual? Não seria esta uma questão secundária? Uma questão privada para além das ações públicas de Hoover?

    FBI e a perseguição aos homossexuais

    Seria! Ocorre que entre as páginas mais obscuras da história do FBI está a de uma ampla perseguição aos considerados “desviados” sexualmente. Neste “desvio”, os principais “inimigos” foram os homossexuais e as prostitutas. Assim, o debate (se é que é um debate) seria até que ponto a orientação sexual de Hoover teria influenciado nas ações persecutórias?  Como dissemos, Weiner descarta essa questão, como fantasia.

    Do meu ponto de vista, pois o debate se perdeu entre as caricaturas formadas sobre Hoover. As perseguições políticas ou motivadas por questões morais não são parte de uma escolha individual de quem ocupe um lugar de poder (e no caso de Hoover um destacado lugar de poder!). As medidas tomadas pelo Estado contra um grupo social devem ser explicadas pelo contexto social, muito mais do que por uma “pseudo psicologia de boteco”! Aqui, pontos para o autor, por saber inserir a figura pública no contexto histórico (o que é sempre muito complicado!)

    Por fim! 

    O livro começa com um dilema clássico nas Ciências Políticas: liberdade individual x segurança coletiva. Um dilema que perseguiu todos os pensadores políticos e todos aqueles que ocuparam lugar de poder no Estado. Um dilema que sempre se coloca quando o Estado precisa de órgãos de segurança e inteligência, como FBI.

    Quais são os limites do poder de vigilância? O que é legítimo em nome da segurança? A leitura do livro nos coloca o tempo todo, essa questão. Obviamente que o autor, claramente um liberal, não resolve, mas conhecer a trajetória do FBI, e em particular os dilemas de Hoover, nos ajuda a refletir, principalmente neste tempo em que temos a invasão do privado e dos escândalos de  espionagem, por um lado, e por outro o trauma dos atentados terroristas. Eis os desafios para a sociedade americana e para o próprio FBI.

    J. Edgar Hoover no Cinema.

    Interessante observar a diferença, sobre a questão da homosexualidade, abordada no filme J Edgar, dirigido por Clint Eastwood e com Leonardo DiCaprio no papel principal. O filme assume a versão de que Hoover era homosexual, embora não coloque cenas explícitas do relacionamento.

    Uma cena que nos chama a atenção é a que os dois vestidos em roupão entram em uma briga violenta em um hotel. Este episódio é relatada em diferentes biografias de Hoover, mas Weiner a descarta como verídica. No filme a parte mais explícita do suposto relacionamento de Hoover com seus principal assistente.

    Novamente é preciso dizer que se Hoover era homosexual ou não seria uma questão privada do que pública! Se não fosse o fato de o FBI nas primeiras décadas de atividade não tivesse articulado uma perseguição sistêmica aos homosexuais.

    • Leia também a obra do mesmo autor sobre a CIA (Aqui)