Sul Global ou Leste Global?  Uma questão russa.


• As origens históricas do Sul Global
• Por que a Rússia prefere o termo Leste Global ?
• Como diferentes países utilizam o Sul Global em sua diplomacia
• As contradições e conflitos potenciais no uso político desses conceitos

O que é o Sul Global?

O conceito de Sul Global é uma construção político e geográfica que ganhou força no final do século XX na busca por alinhar  países em desenvolvimento, concentrados no hemisfério Sul.

Ele substituiu expressões como “Terceiro Mundo” e “países subdesenvolvidos”, usados durante a Guerra Fria (1945 – 1991). Durante a  Guerra Fria,  o “Norte” reunia potências industrializadas, enquanto o “Sul” representava economias periféricas ou emergentes. Essa perspectiva se consolidou na Conferência de Bandung, em 1955, e no Movimento dos Não Alinhados, que buscavam maior autonomia frente à disputa entre Estados Unidos e União Soviética.

Assim, o conceito passou a simbolizar solidariedade política, defesa de reformas na governança global e a promoção de cooperação econômica entre países em desenvolvimento.

Mas se a Rússia, ou URSS, era parte no conflito global durante a Guerra Fria, como ela poderia fazer parte do Sul Global no século seguinte?

A questão russa e o Leste Global

A Rússia evita ser enquadrar no Sul Global e prefere empregar expressões como Leste Global ou “países amigos”.

Essa escolha está ligada à estratégia de se apresentar como potência euroasiática equivalente a Estados Unidos e China, e não como parte de um bloco de países em desenvolvimento.


Propagandistas do Kremlin associa o Leste Global à construção de um bloco civilizacional alternativo ao “Ocidente Coletivo”, formado por potências militares e industriais com interesses convergentes na Eurásia. Essa visão está conectada  com a ideologia  geopolítica do eurasianismo, que coloca Moscou como centro de um espaço integrado entre Europa Oriental e Ásia.

Ao adotar esse enquadramento, o regime de Putin se afasta do peso histórico colonial implícito no termo Sul Global e reforça sua imagem de liderança no espaço pós-soviético.

Ao contrário dos paises do Sul Global a Rússia não passou pela experiência histórica do colonialismo, pelo contrário, no século XIX, junto com os paises europeus, o Império Russo era uma potência imperialista.

O Imperio Russo avançou para o Cáucaso, absorvendo territórios como a Geórgia, o Azerbaijão e o Armênia, além de incorporar vastas áreas da Ásia Central, incluindo o atual Uzbequistão, Turcomenistão, Quirguistão, Cazaquistão e Tadjiquistão. Na Europa, dominou a região do Báltico e as Finlândia, além de partilhar a Polônia.

Esse movimento foi impulsionado tanto por objetivos estratégicos, como o controle de rotas comerciais e a contenção de influências britânicas e otomanas, quanto por motivações ideológicas ligadas à missão civilizatória e religiosa do czarismo ortodoxo.

No extremo Oriente, a Rússia expandiu-se para a Sibéria e estabeleceu presença no Pacífico, consolidando sua posição como um império transcontinental com interesses simultâneos na Europa e na Ásia.

Nesse sentido, o regime de Putin que se apropria, tanto da imagem de grandiosidade do Império Russo, quanto da União Soviética, joga para o seu público interno a leitura euroasiatica de leste Global. Já a sua diplomacia, por estratégia aceita a ideia de Sul global por conveniência geopolítica.


Como os países utilizam o Sul Global

Apesar da posição russa, outros países do BRICS utilizam o conceito de Sul Global de formas distintas. A China se apresenta como líder do mundo em desenvolvimento, fortalecendo sua posição em fóruns multilaterais e ampliando sua influência na Ásia, África e América Latina.

A Índia mantém a identidade de porta-voz dos não alinhados e organiza encontros específicos do Sul Global para reafirmar seu papel diplomático.

Já África do Sul, emprega o conceito para sustentar sua liderança continental e propor reformas na ordem internacional.

O Brasil, nos governos Lula e Dilma, usa o Sul Global como narrativa de mediação e protagonismo, buscando reformas multilaterais e intensificando a cooperação com países do Sul Global e Rússia.

Contradições e conflitos potenciais

O uso político do Sul Global cria uma base retórica de unidade, mas esconde contradições relevantes. Potências emergentes que defendem o conceito nem sempre compartilham os mesmos interesses econômicos ou estratégicos.

Um exemplo é a China que se tornou credora de diversos países africanos e asiáticos, os colocando em relação de dependência.

O Brasil, embora invoque o Sul Global, não superou a sua dependência econômica das potências do Norte e se tornou dependente do mercado Chinês, o que apontou para fragilidades importantes, nas crises mais recentes.


A própria existência da narrativa russa do Leste Global demonstra que o termo não é neutro. Sua aceitação ou rejeição revela alinhamentos geopolíticos específicos.

Diante das crises atuais, com os EUA e a guerra na Ucrânia, será importante perceber se de fato existe a  capacidade do Sul Global de articular uma política unificada, como sonha o Brasil, ou se a retórica acabara se esfacelado diante de interesses específicos.

Para além, retomado o sonho expansionista imperialista russo, como ficou explícito com a invasão da Ucrânia, é de se perguntar: a Rússia deve ser de fato considerada como uma aliada no Sul Global? Ou para ela os BRICS e o Sul Global são apenas estratégias dentro de uma perspectiva de reconstrução de áreas de domínio e influência que remontam ao Império Russo e a União Soviética?

É preciso repetir, a Rússia não passou pela experiência colonial, ela foi (e é) uma potência colonizadora e se o Sul global tivesse essa compreensão, para além da propaganda do regime Putin, as estratégias e expectativas de aliança seriam melhor dimensionadas.

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