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  • Bulgária: O Lado Esquerdo.

    Bulgária: O Lado Esquerdo.

    • Resenha do livro O Lado Esquerdo da História
    • História da Bulgária
    • Antropologia e gênero

    O Lado Esquerdo da História de Kristen Ghodsee foi sem dúvida um dos melhores livros que conseguir ler nos últimos anos, por duas razões: pelo tema abordado e pela forma como foi escrito. Kristen Ghodsee é uma conhecida antropóloga americana cujos estudos abordam temas relacionados a gênero e a Europa Oriental, após o colapso do comunismo. Em particular se concentra na região dos Balcãs, principalmente na Bulgária.

    O livro tem um tom particular: ao contrário do que se espera de uma obra escrita por uma acadêmica, a autora mescla suas pesquisas a elementos do seu cotidiano, suas impressões, e reflexões. Assim, é como se nós estivéssemos lendo o seu caderno de campo e não somente sua análise final. Essa característica, ao invés de deixar a análise confusa, acrescentou uma dramaticidade pessoal que deu maior intensidade ao livro.

    A obra começa com uma investigação sobre o assassinato de Frank Thompson que lutou como partisan na Bulgária até ser capturado e fuzilado. O capitão Thompson se tornou famoso por sua luta dedicada e foi homenageado até com nome de rua, durante o governo comunista. Ocorre que ele foi também o irmão mais velho, e para alguns o mais talentoso, de Edward P. Thompson (1924 – 1993) um dos mais importantes historiadores marxistas do século XX.

    Ao buscar as fontes de suas pesquisas sobre Frank Thompson, a autora entrou em contato com uma série de personagens que se entrelaçam com as tensões e conflitos de uma Bulgária presa entre as memórias do regime comunista e a crise que se abateu sobre o país na primeira década do século XXI. A Bulgária foi aceita na União Europeia, mas é considerada o seu membro mais pobre.

    As Mulheres na Bulgária Comunista.

    Se na primeira parte do livro, Kristen Ghodsee recupera a História daqueles que lutaram contra o fascismo, na segunda, ela se dedica à questão das mulheres na Bulgária, encontrando no seu percurso interessantes e intrigantes personagens.

    Entre esses personagens duas mulheres que trabalhavam para o regime se destacam. A primeira foi Elena Lagadinova, uma das heroínas da luta contra o nazi-fascismo, uma das mais jovens mulheres a fazer parte da resistência. Recebeu o codinome de Amazona por ter se reunido aos partisans e ao seu irmão Assen, um dos principais líderes, em um cavalo.

    Após a Guerra, e de se formar e doutorar, Elena integrou o Comitê das Mulheres. Durante o período comunista, a Bulgária conseguiu estabelecer uma relevante política de Estado com relação às mulheres o que incluía: licença maternidade de dois anos, jardins de infância, ingresso na universidade entre outras questões.

    Todo esse trabalho deu à mulher búlgara uma das melhores condições entre os países do bloco comunista e, certamente, muito melhor do que da maior parte dos países ocidentais.

    O Fim do Comunismo na Bulgária

    Com o fim do comunismo, Elena passou a ser apenas mais uma entre tantas aposentadas com as dificuldades financeiras de todos os búlgaros que viviam (vivem) de pensão, em plena crise que se abateu na economia europeia em 2008.

    Apenas saudosismo ou era tudo verdade?

    Entre os diálogos mais intrigantes registrados pela autora está o do seu último encontro com Anelia (pseudônimo). Anelia foi uma importante participante das publicações femininas na Bulgária e representante deste país em Berlim em diversos congressos.

    Ao longo dos anos ela sempre escreveu artigos críticos ao modo de vida ocidental, ao capitalismo, demonstrando como este explorava os indivíduos e os deixava em situação de miséria. Em todos os anos em que escreveu ela demonstrava desconfiança sobre o conteúdo dos seus próprios textos. Acreditava realizar apenas trabalho de propaganda ditada pela linha do Partido Comunista, da qual ela nunca foi um membro.

    Ao chegar aos setenta anos de idade, com uma pensão que não a sustentava, correndo risco de perder seu único apartamento e desempregada, ela olha para o passado e entende que tudo o que havia escrito de negativo sobre o capitalismo era verdade: “era tudo verdade”.

    Dilemas da Escrita da Bulgária

    Como muito bem aponta Ghodsee, escrever o comunismo nos coloca diante de muitas tensões. Os comunistas derrotaram o nazi-fascismo, mas instalaram um regime repressor e censor que levou milhares de pessoas às prisões e à morte.

    Assim como Boris Lukanov, assassino de Frank Thompson, Petar Gabrovski que pessoalmente assinou a deportação de 20.000 judeus está na lista de vítimas do comunismo.

    Ao mesmo tempo, no cotidiano, abriu horizontes para a ciência, para uma vida melhor das mulheres, principalmente na Bulgária, aprimorou a educação, garantiu emprego, moradia, assistência médica e principalmente acabou com a miséria. Em suma, deu estabilidade ao cotidiano dos indivíduos.

    Como articular essas duas pontas? Como expressar essas contradições? Este é o desafio de quem quiser escrever essa história de uma forma honesta. Honestidade que anda em falta nos estudos sobre o comunismo.

    Ávidos por ingressar no Ocidente, os países da Europa Oriental, com apoio financeiro do Ocidente, se apressaram em destruir qualquer referência positiva ao comunismo. Negam, manipulam, demonizam constantemente até mesmo a palavra socialismo.

    Mesmo os intelectuais, que tanto se beneficiaram do sistema universitário comunista, hoje trabalham com recursos ocidentais para falsificar a História. Colocam, assim, todos os reclames sociais gerados pela perda de benefícios e direitos que a adesão ao liberalismo radical representou, bem como todas as memórias que não combinam com a memória oficial, sob o rótulo de revisionismo e saudosismo.

    Ainda no que se refere à memória, o que se tem realizado é um discurso de vitimização, ou seja, todos viraram vítimas do comunismo, mesmo aqueles que eram conhecidos nazistas e fascistas. Como muito bem ilustra a autora, o assassino de Frank Thompson está em um destes sites de “memória” como vítima do comunismo.

    Referências

    Outros livros de Kristen Ghodsee

    Kristen Ghodsee. The Left Side of History. World War II and The Unfulfilled Promise of Communism in Eastern Europe. Duke University Press, 2015

    _________________ Lost in Transition: Ethnographies of Everyday Life After Communism, Durham: Duke University Press, 2011.

    ___________ Muslim Lives in Eastern Europe: Gender, Ethnicity and the Transformation of Islam is Postsocialist Bulgaria. Princeton: University Press, 2009.

    ___________ The Red Riviera: Gender, Tourism and Postsocialism on the Black Sea. Durham: Duke University Press, 2005.

  • Um Crime político na década 1940

    Um Crime político na década 1940

    • Um Crime Político
    • Mataram Alfonsas Marma
    • Imigração Lituana
    Apresentação do Livro!

    Na narrativa oficial da história da nossa República o fim do período de governo de Getúlio Vargas (1930 – 1945) é denominado democrático. No entanto, um olhar mais acurado sobre o governo de Eurico Gaspar Dutra (1946 – 1951) nos revela que, apesar da aprovação de uma nova carta constitucional em 1946, esteve longe de ser plenamente democrático, pelo contrário, a repressão política e os crimes políticos foram uma constante. Nesse livro analisamos um crime político: o massacre de Tupã, no qual morreu Alfonsas Marma.

    Capa. Mataram Alfonsas Marma.
    Capa. Mataram Alfonsas Marma.

    Durante o período Dutra estima-se que aproximadamente 50 militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) tenham sido assassinados pelas forças repressivas do Estado. Muitas dessas histórias e desses personagens permanecem desconhecidos da nossa sociedade, longe tanto da nossa história, como da nossa memória política. Memória essa que ficou ainda mais distante quando a Comissão da Verdade, decidiu, após receber pressão de organizações sociais e intelectuais, que seriam investigados os crimes políticos cometidos somente durante o Regime Militar.

    Não quero aqui reacender esse debate! Mas vale lembrar que o principal argumento era que não se deveria misturar o que ocorreu em um período de exceção, autoritário, com um período de liberdade democrática. Bom, considerando o período Dutra essa distinção é uma bobagem. Para além, na nossa história republicana, o assassinato político, sempre foi mais uma regra do que uma exceção. No mais, no Brasil sabemos que é possível reunir regra e exceção, democracia e autoritarismo ao mesmo tempo.

    Um crime político no governo Dutra

    O governo Dutra foi em tese pautado pela aprovação de uma nova constituição e de um processo eleitoral que não só deu legalidade ao Partido Comunista Brasileiro como fez de Luís Carlos Prestes um vitorioso nas urnas. Eis que uma armação política realizada pelo PTB recolocou o PCB na ilegalidade e todos os representantes legitimamente eleitos foram caçados. A partir desse momento o que se viu foi que a polícia política, como o Deops em São Paulo, deu início a uma implacável perseguição aos militantes políticos do PCB.

    Esse é um ponto a ser notado. A ruptura de regime do Estado Novo (1937 – 1945) para a democracia não significou uma mudança nas estruturas das instituições. Ou seja, as mesmas práticas, e os mesmos indivíduos, que atuavam na repressão durante o varguismo continuaram a atuar no governo Dutra. Essa manutenção das instituições repressivas e até mesmo o seu aprimoramento é que permitiram uma repressão tão feroz.

    Especificamente no caso de São Paulo, durante o governo de Adhemar de Barros o Deops, passou por mudanças estruturais sendo mesmo criada uma Delegacia de Expulsandos, mais tarde renomeada para que o propósito de deter e expulsar estrangeiros não ficasse tão evidente.

    Mataram Alfonsas Marma

    Se a Comissão da Verdade não fez o processo de investigação dos crimes políticos no pós-Varguismo cabe a nós historiadores fazermos. Eis, portanto, a pequena contribuição que quis oferecer com a história de um dos assassinatos cometidos pela polícia durante o processo repressivo de 1948-1949. Procurei traçar na forma biográfica a trajetória do imigrante lituano Alfonsas Marma que desde jovem participou das atividades políticas e sociais entre os lituanos na cidade de São Paulo.

    Aprendeu a função de gráfico ao trabalhar em diversos jornais. Foi preso e expulso do Brasil em 1930. No Uruguai, onde se estabeleceu, ajudou na formação dos principais jornais em idioma lituano naquele país. Retornou clandestinamente e voltou a atuar nas principais organizações e jornais lituanos até ser novamente preso e, após ser libertado, assassinado pela polícia.

    Essa é apenas uma das mais de 50 histórias que ainda devem ser recuperadas para que possamos entender melhor a nossa República, a nossa história política e o lugar que a violência e os crimes de Estado ocupam nessa.

    Referência:

    E.R.G. ZEN. Mataram Alfonsas Marma. Imigração, Comunismo e Repressão. Rio de Janeiro: Aped, 2015.

    Para Adquirir

    O livro pode ser adquirido AQUI

  • Os Outros Esquecidos: Monumentos ao Exército Vermelho

    Os Outros Esquecidos: Monumentos ao Exército Vermelho

    Por Dr. Erick Reis Godliauskas Zen

    Twitter: @erickrgzen

    • A memória na Lituânia
    • Monumento ao Exército Vermelho
    • Memória oficial sobre o comunismo

    Em diversas cidades da Lituânia um incômodo monumento está à vista de quem queira ver: Os cemitérios dos combatentes do Exército Vermelho que caíram ao longo da sangrenta campanha que se arrastou no país. Um duplo sentimento se estabelece. Por um lado, são a celebração da vitória contra o nazismo e a ocupação alemã. Por outro, era o estabelecimento do regime comunista na Lituânia e a sua integração a União Soviética.

    Durante o período soviético, esses cemitérios foram cuidados, preservados, e eram até mesmo lugares de celebração. Com o fim do regime, virou um incômodo, pois se criou ao longo das últimas décadas uma memória e uma história oficial antissoviética – não raramente antiesquerda, como forma de afirmação da independência.

    Nos livros de história, o comunismo é sempre apresentado como algo externo aos lituanos. Como se não houvesse lituanos comunistas e quando estes trabalharam em prol da União Soviética são chamados de colaboracionistas, da forma mais pejorativa possível. Ou como mero oportunistas. Assim, ser lituano é ser anticomunista e quem escreva contra ou tente discutir – negar – o “genocídio” soviético você pode ser punido, com a mesma lei que pune aqueles que tentam negar o holocausto.

    Ainda não raramente, em muitos livros, se tenta enfatizar a quantidade de “não lituanos” nas organizações comunistas naquele país. Isso equivale a dizer que pela expressiva quantidade de judeus, russos e polacos no Partido Comunista Lituano ele não seria legitimo. Muitas vezes essas referência são feitas de forma discreta, espalhada entre as páginas, mas estão lá.

    Podemos comparar aqui a Lituânia com a Rússia e entendermos a diferença. Os russos incorporaram os “feitos” soviéticos a sua memória e a suas datas cívicas, como o Dia da Vitória, ou ainda todas as vitórias olímpicas e…não menos importante… o mausoléu do Lênin continua no mesmo lugar.

    Na Lituânia, a União Soviética é expelida da memória. Qual o problema? O problema é que isso acaba por esconder a participação de lituanos em sacrifícios e feitos importantes, como derrotar o nazismo. Em Šiauliai, por exemplo, um batalhão inteiro do Exército Vermelho era composto por lituanos – parte da historiografia nega isso afirmando que tinham mais russos – para complicar esse esforço de Guerra como esse batalhão teve como grande suporte os imigrantes lituanos que desde a América, Norte e Sul, enviavam ajuda e contribuições.

    Da mesma forma, os partisans comunistas que lutaram contra a presença nazista são em alguns casos chamados de terroristas e a eles são atribuídas as respostas à ação dos comunistas, numa inversão histórica inaceitável, mesmo para a péssima literatura histórica.

    Assim, aqueles que não se somaram às lutas antifascista e nazista na Lituânia são esquecidos ou difamados. É fato que o regime soviético por todas as atrocidades cometidas, e que não podem ser esquecidas ou negadas, representa um trauma, uma cicatriz que será difícil de fazer cicatrizar e já não estou certo de que deve deixar cicatrizar.

    Mas a ferida aberta não pode infeccionar toda a memória lituana. Desprezar ou ter vergonha de seu passado não ajuda, menos ainda falsificá-lo deliberadamente. Os cemitérios aos combatentes, ainda que estejam com os nomes escritos em russo e não tragam todos os símbolos comunistas, estão ali para lembrar do que foi lutar contra o nazismo. Dos sacrifícios de homens e mulheres que entregaram sua vida contra o fascismo e o nazismo e nisso estavam certos em fazer. Foi um sacrifício que valeu. O que aconteceu depois não pode ser imputado a eles e suas memórias não podem ser desprezadas. Ainda hoje, cemitérios dos combatentes do Exército Vermelho na Lituânia são preservados pela embaixada russa…

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  • Žagarė: memória de um genocídio

    Žagarė: memória de um genocídio

    Por Dr. Erick Reis Godliauskas Zen

    Twitter: @erickrgzen

    • Sobre o genocídio em Žagarė
    • Minhas impressões sobre a memória de um genocídio

    Žagarė: memória de um genocídio… Quando saí do Brasil carregava comigo uma obsessão: conhecer a Lituânia. Já na Lituânia de norte a sul de leste a oeste. Era o meu encontro com a terra natal da minha família. Ao chegar fui conduzido por uma amiga que em um fim de semana me convidou para conhecer a cidade onde vivia a sua família, localizada bem ao norte do país. Pegamos um ônibus em Kaunas e fomos para Joniškis, uma pequena cidade próximo a Šiauliai.

    Já na casa dela, fui recebido por seus pais e suas três irmãs mais novas e ali me deliciei com a farta comida: sopa de beterraba e bolinhos de carne de porco que foram servidos no café da manhã. Delicioso, mas pesado para quem não está acostumado.

    Seguimos para nossa jornada, as irmãs mais novas da minha amiga decidiram nos acompanhar. Conhecemos Šiauliai! Andamos pelas ruas principais e fomos ao gigantesco shopping, que estava vazio. Na parte da tarde, passamos horas simplesmente andando sem direção por algumas ruas. Buscamos por alguns lugares onde eu queria tirar fotos: a escola, o centro, a estação de trem.

    No dia seguinte, decidimos ir para o norte de Joniškis, depois de tomar a tradicional sopa lituana. Chegamos à cidade de Žagarė que parecia vazia e um tanto bagunçada depois de uma tremenda tempestade de verão. Žagarė é uma cidade muito particular na Lituânia, pois, durante o período do Império Russo foi zona de residência de judeus e ciganos. Pela sua localização, quase na divisa com a Letônia foi um ponto de passagem e comércio por séculos. Assim, a cidade teve seu tempo de glória, de desenvolvimento econômico e cultural ou, podemos dizer, multicultural.

    Essa história foi drasticamente interrompida pela brutalidade da Segunda Guerra Mundial, quando aproximadamente 2.500 judeus foram fuzilados e enterrados em uma vala comum. Hoje, no local, um gramado com um caminho de pedra e poucas arvores. No centro, um pequeno monumento em memória às vitimas do genocídio nazista.DSC03641 Diante deste monumento, minha amiga tentava explicar a sua irmã de oito anos o que tinha acontecido ali e o porque do pequeno monumento. A menina olhava a sua volta e não acreditava. Dizia não ser possível ter 2.000 pessoas enterradas naquele parque.Seu argumento era simples e comovente: não havia espaço suficiente para fazer cada um dos túmulos para essa quantidade de corpos.

    Era sem dúvida um argumento intrigante e nos colocava em uma situação complicada. Como explicar para uma criança que milhares de pessoas podem ser mortas e seus corpos atirados em uma vala comum? Minha amiga tentou explicar uma vez mais. A garotinha continuava olhando de um lado ao outro buscando algum sinal das covas e dos túmulos. Ela se aproximou de nós uma vez mais, com seus comentários, e nos disse que aquilo era muito errado. As pessoas não podem ser enterradas juntas, pois os familiares não poderiam reconhecer onde estavam os seus parentes?

    Os cemitérios na Lituânia são distintos do que estamos acostumados no Brasil. Eles são visíveis das estradas, das ruas e não são escondidos por muros. No geral, estão sempre muito arrumados, particularmente no verão e na primavera, quando arranjos de flores de diferentes tipos e cores são colocados. Pode ser que a ligação com os mortos das religiões tradicionais não exista mais. Pode ser pelo simples hábito ou para não ser difamado pelos vizinhos. Seja como for, os cemitérios são frequentemente visitados e arrumados. Dai nossa garotinha ficar ainda mais impressionada, afinal a colocamos diretamente e de uma vez diante de uma tragédia brutal.

    Com oito anos, ela entendeu muito rápido o sentido daquele genocídio, e que talvez seja o de qualquer genocídio (etnocídio): o de eliminar, esconder e principalmente fazer esquecer aqueles que foram mortos. Não bastaria eliminar fisicamente era preciso eliminar de cada memória a simples existência daquela comunidade. Fabricar um esquecimento é o que segue ao genocídio. Fazer os mortos perderam sua individualidade, suas histórias pessoais, suas relações com os descendentes. Desaparece da memória!

    Caminhar por aquele parque e escutar minha amiga explicar uma história tão difícil a sua inquieta irmã me fez repensar a importância da memória. Não deixar esquecer a brutalidade, do genocídio e da violência é uma tarefa árdua e que deve ser contínua. O que aconteceu em Žagarė deve ser lembrado, por mais doloroso que seja.